quarta-feira, 4 de julho de 2012

Riana

4 jul 2012

O brilho da lua cheia era ofuscado por fogueiras e tochas. Tochas empunhadas por homens e mulheres que olhavam, na expectativa, para o animal enjaulado. O animal que logo seria purificado pelo Sol, e assim a justiça seria feita. Longa foi a caçada, mas agora, em poucas horas, tudo estaria terminado.
A vontade de muitos era acabar logo com isso. Mas a tradição dizia diferente. Em outras terras o legado deixado pelos primeiros humanos a ocupar estas florestas já fora sido esquecido. Mas não aqui. Neste lugar, distante das muralhas das grandes cidades, as antigas tradições eram seguidas. A Purificação seria feita pelo Sol, e o Sol não podia ser apressado.
Um homem entrou para o meio do círculo. "Vocês sabem a lei!", a voz dele se fez ouvir por sobre os murmúrios e as maldições do povo. "Uma vida por uma vida!" Ele olhou ao redor. "Uma vida por uma não-vida! Se alguém entre vocês," - ele fez um largo círculo com as mãos,- "achar que este animal não merece morrer, saia e lute!"
Ninguém se moveu. A morte do animal enjaulado era certa. Mas a tradição dizia: um segundo chamado deve ser feito. E o homem, então, repetiu: "Uma vida por uma não vida! Quem..." - ele foi interrompido por uma voz vinda das sombras: "Eu lutarei!"
O silêncio que se instalou só era interrompido pelo som das chamas e pelos grunhidos do animal enjaulado. Alguém estava disposto a lutar para salvar a besta. E todos sabiam em que estas lutas terminavam.
Alguém... uma mulher, pequena e frágil em comparação aos homens e mulheres da florestas. Ao menos para alguém que não visse o seu olhar - olhar de quem foi ao inferno e voltou, ou quase isso.
"O que este animal significa pra você?" - uma voz disse, e ela poderia ter vindo de qualquer um dos presentes.
Riana olhou ao redor, evitando o olhar do animal enjaulado. "Nada." Silêncio. "Mas ela é importante para alguém que eu amo." Mais silêncio, com algumas risadas disfarçadas. Riana as ignorou. Ela sabia o que ia acontecer; e não havia mais volta.
Pois os homens e mulheres da floresta não iam deixar sua presa escapar, não importa o que a tradição fale. Seu destino estava traçado... Ou não.
Há momentos em que não há saída. Este é um deles. Sem saída.
O animal enjaulado olhou para ela, formulou com os lábios em uma língua por muitos esquecida "Você não precisa fazer isso". Quem me dera. Mas eu preciso.
Um  homem - o maior e mais forte e rápido de todos, aquele que havia capturado a besta, hábil com o machado e o arco, entrou no centro do círculo. O respeito que todos tinham por ele podia ser sentido no silêncio - até mesmo as risadas se calaram, e o próprio animal enjaulado parou de grunir. O próprio chefe da tribo ficou em silêncio, permitindo que o seu maior caçador e guerreiro dissesse as palavras antes da luta.
"Você sabe em que as lutas terminam." - disse o caçador. Um erro. Eu precisava falar. Ele não. A intonação de voz fala muito sobre um combatente antes da batalha.
"Eu sei quando a nossa vai terminar," - respondeu Riana, falando devagar para que todos a ouvissem. "Quando um de nós estiver caído no chão, com sangue saindo dos olhos que nunca mais verão a luz do dia, apenas a escuridão da noite eterna."
Suas palavras fizeram efeito, e a breve surpresa sentida pelo homem foi suficiente para ela jogar nele sua lança. O homem se desviou fácil, mas este era o tempo que ela precisava para tirar a adaga escondida na sua bota. Adaga. A arma dos ladrões e dos assassinos. Ela não era nenhum dos dois, mas conviveu com eles por vários anos. E ladrões e assassinos não existiam nesta floresta. Esta podia ser a vantagem que ela precisava....
...Uma luta parece em muito com uma dança. Um parceiro respondendo aos movimentos do outro. Ataque, finta, recuo, contra-ataque, desvio, ataque, desvio, finta... Pode durar segundos ou horas. A luta ao redor da fogueira - sombras em luta. Quase romântico. Até que alguém cometa um erro.
E o erro foi cometido. Um golpe rápido demais, e o peso do machado causou um leve desequilíbrio. Desequilíbrio facilmente aproveitado por quem viveu entre ladrões e assassinos. De repente, o homem estava de costas no chão, seu machado longe, e Riana com a bota sobre seu peito e a adaga na mão. Braço flexionado, e um olhar dizendo mais do que qualquer palavra. Se mova, e a adaga entra no seu coração. Ele não se moveu.
Será que venci?... "Eu venci. Soltem a fera."
E elas iriam embora.
Mas Riana não pôde dizer isso. Os homens e mulheres da floresta não iam deixar sua presa escapar tão fácil. Uma estrela de ferro atravessou seu pescoço, e ela caiu, sem nem ao menos atirar a adaga. Não faz diferença agora. Sangue saindo dos olhos, que jamais veriam de novo a luz do dia, apenas a Noite da Escuridão Eterna.
O Sol estava nascendo, e a Purificação ia acontecer... Uma vida por uma não-vida - mas ninguém considerou a estrela vindo das sombras uma afronta às tradições.
Ninguém, com uma excessão. O animal enjaulado estava disposto a enfrentar o fim da sua não-vida. Ela podia aceitar o julgamento de quem a capturou, pois ela lhes causou um mal ao se alimentar na floresta.
Ela não podia aceitar um assassinato depois de uma luta justa.
Quando o sol nasceu, ele iluminou apenas uma jaula quebrada, um círculo coberto de sangue e corpos, e as cinzas de uma fogueira. Poucos viveram o suficiente para entender o que aconteceu; ninguém viveu para contar a história.
E o corpo de Riana não estava mais lá. Apenas um T élfico, escrito com sangue na areia, marcava o fim da sua vida.

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